Portenhos vão à Justiça para salvar Buenos Aires das demolições

ONGs entram com processos nas cortes argentinas contra destruição de prédios históricos da capital do país

Um século atrás, a abundância de grãos e a exportação de carne fez com que a Argentina ocupasse o posto de oitavo país mais rico do mundo. O crescimento do PIB per capita excedeu 50% a mais do que várias nações europeias, incluindo a Itália, e mais do que o triplo do Japão. Uma incontrolável onda de imigrantes cruzou o Atlântico até Buenos Aires principal porto da região, onde o trabalho era abundante e as condições de vida eram boas.

A esperança de se tornar “tão rico como um argentino” agiu como um imã poderoso que fez com que, em 1914, metade dos 1,6 milhão de habitantes de Buenos Aires fosse estrangeiro, a maioria deles na Europa. A cidade embarcou, ao mesmo tempo, em uma reestruturação arquitetônica que a transformou de um distante entreposto colonial do antigo império espanhol em uma moderna e pujante metrópole – um legado que agora está no centro de uma tensão constante.

“Buenos Aires era tão rica que podemos comparar ao que é Abu Dhabi hoje”, disse Teresa Anchorena, ex-parlamentar da cidade e atualmente membro de uma comissão de herança nacional, ao jornal La Nación. “Podia pagar os melhores arquitetos do mundo para projetar os prédios de uma nação líder”, completou.

Esses arquitetos europeus logo fizeram Buenos Aires ficar conhecida internacionalmente como a “Paris da América do Sul”, uma cidade multicultural com avenidas elegantes que rivalizava com as maiores capitais do planeta em refinamento cultural e modernidade. Novas invenções, como as linhas telefônicas, ruas com iluminação elétrica e linhas de metrô – muitas delas construídas por empresas britânicas – fizeram a capital argentina se tornar uma das maiores metrópoles do mundo, ao lado das estadunidenses e europeias.

Mas a Argentina tristemente falhou em manter vivas suas promessas. Se por meio de inadequadas decisões econômicas ou por pela mudança na direção dos ventos dos mercados internacionais às commodities, fato é que nos anos 1950 o país tinha saído dos trilhos: caiu para a 55ª posição global em PIB per capita, queda proporcionada por décadas de inflação crônica e uma série de crises econômicas.

Apesar disso, nos últimos anos a cidade seguiu sendo uma das preferidas dos turistas sul-americanos não apenas por causa das passagens aéreas baratas, mas pelo ar europeu que ela ainda propicia.

Buenos Aires foi palco de tumultos novamente em 2014, quando a Argentina foi declarada inadimplente pelas agências internacionais de crédito depois que a Corte estadunidense condenou a nação a pagar US$ 1,3 bi aos seus fiadores estrangeiros que refutaram em cortar os títulos que tinham na crise de 2001. “Quando aquela velha glória se esgotou, a cidade foi deixada com notáveis marcos arquitetônicos como a Ópera de Colón (a terceira melhor casa de ópera do mundo, de acordo com a revista estadunidense National Geographic), que corresponde à sua posição na época”, explica Anchorena.

“Mas ao mesmo tempo que contrasta com o passado ela é parte do que fez Buenos Aires como uma única, complexa, atrativa e pulsante cidade hoje. Então, nós devemos tentar nosso melhor para preservar o que permaneceu daquele passado formidável”, continua.

Buenos Aires não se preocupou tradicionalmente com preservação. Somente alguns prédios permaneceram dos anos coloniais depois que a cidade foi fundada, em 1536, e que estão agora no distrito velho de San Telmo. A arquitetura parisiense do começo do século XX está diminuindo por causa do boom das propriedades que acompanhou um renovado sopro de crescimento econômico na última década até 2013.

“A ideologia é sempre essa: aqui é a América, tudo precisa ser novo”, diz Sérgio Kiernan, jornalista que escreve crônicas sobre a destruição dos edifícios antigos em sua coluna semanal no diário Página 12. “Essa atitude ainda prevalece em setores do governo hoje”, completa. No entanto, recentemente uma combinação de especialistas como Anchorena e grupos de base alarmados com o ritmo da destruição se tornaram uma dor de cabeça para os incorporadores, assim como para as autoridades.

O indesejável herói da causa pela herança da cidade é o professor de música Santiago Pusso, um devoto católico que ministra aulas no conservatório de Buenos Aires, quando não atua em áreas pobres, como a favela conhecida como Villa 21. Em 2007, Pusso começou o grupo “Basta de Demoler” com alguns vizinhos das regiões mais afetadas. Eles descobriram um jeito rápido de parar as demolições por meio do sistema legal. “Nós decidimos ir às cortes”, explicou ao jornal britânico The Guardian. “Essa luta entre Davi e Golias seria impossível de outro modo”, completou.

Entre os maiores projetos paralisados por Pusso estão um hotel de 18 andares aprovado pelos planejadores da cidade próximo à Igreja de Santa Catalina, construída em 1745 e cujos jardins – considerados um oásis de paz no centro de Buenos Aires – são abertos ao público. Provavelmente um dos melhores exemplos da arquitetura colonial que permaneceu na capital argentina, o templo foi ocupado por forças britânicas durante a segunda tentativa fracassada de invasão do Reino Unido a Buenos Aires, liderada por John Whitelocke em 1807.

“Pusso está usando uma poderosa tática incomum em que uma terceira parte fora do negócio bloqueia um projeto de construção maior através das cortes”, explica o jornalista Kiernan. “Desde que o grupo conseguiu parar uma demolição, em 2007, que o método passou a ser aplicado por outras ONGs e por cidadãos privados em um número constante de casos”.

A relação conturbada de Pusso com as autoridades portenhas pioraram em 2014, quando ele recebeu uma ação judicial cobrando o pagamento de 24 milhões de pesos (R$ 3,9 milhões) por atrapalhar a construção de uma nova estação de metrô na Plaza Alvear, um parque do século XIX na vizinhança do bairro da Recoleta. O lugar é uma atração turística central por causa de uma feira hippie que acontece ali aos finais de semana e pela sua proximidade com a Igreja de Recoleta, construída em 1732.

Pusso foi às cortes para proteger o parque e conseguiu com o que o juiz ordenasse à cidade a paralisação das obras da estação enquanto o tribunal decidia se elas estavam de acordo com legislação municipal. À época, três árvores antigas foram removidas com a ideia de serem replantadas quando a obra acabasse. A prefeitura argumentou que a Plaza Alvear era coloquialmente conhecida também como “Plaza Francia”, embora críticos disseram que a cidade estava modificando a palavra da lei para favorecer a construção de um shopping atrás da Plaza Alvear.

Finalmente, a cidade parou a escavação da estação e anunciou que a moveria para perto da Universidade de Direito de Buenos Aires, também um edifício monumental construído nos anos 1940 em estilo greco-romano remanescente do período da arquitetura fascista. Parecia o fim da história até a cidade anunciar que estava processando Pusso. “A ONG fez um uso abusivo dos seus direitos para manter a proteção por meio das cortes”, disse o procurador-geral de Buenos Aires, Julio Conte. “Seu objetivo foi político. Causar danos políticos e econômicos ao governo da cidade. Nós estamos processando para reaver as perdas financeiras por causa do atraso no fim da obra da estação”, completou.

“Foi vingança. Você não pode acusar o ‘Basta de Demoler” de parar a estação de metrô: ela foi paralisada pelo juiz”, diz Kiernan. Teresa Anchorena concorda com o jornalista do Página 12. “As autoridades estão completamente insensíveis com as questões de herança arquitetônica. Eles não estão nem perto de outras nações latino-americanas como Colômbia e México em relação à preservação”, afirma.

O governo da cidade nega as críticas. “Nós catalogamos mais edifícios históricos para preservação do que qualquer outra administração”, afirmou o chefe do gabinete da prefeitura de Buenos Aires, Horacio Rodríguez, ao The Guardian. Ele pontua como os maiores exemplos disso as reformas na pintura da Ópera de Colón e da nova Usina del Arte, uma renovação que tornou a antiga sede de uma companhia de eletricidade construída em 1912 em um grande complexo de arte no distrito de La Boca.

Independentemente da decisão da corte contra Pusso e seu grupo, uma coisa está clara: a questão da herança arquitetônica da cidade, longamente negligenciada pelo público e pelas autoridades, chegou em Buenos Aires para ficar.

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