Escravidão moderna: Trabalhadores resgatados em condições degradantes em MS serão indenizados

Grupo deverá receber quase R$ 100 mil em verbas rescisórias e dano moral individual; eles laboravam na construção de edificações e cercas para manejo de bovinos

A pandemia de Covid-19 serviu para evidenciar ainda mais as mazelas sociais que dificultam o acesso de muitos indivíduos às necessidades ancoradas no princípio constitucional da dignidade humana. E nessa esteira da sonegação de direitos fundamentais, o enfrentamento do trabalho em condições análogas às de escravo – uma das inúmeras adversidades que a crise sanitária parece ter camuflado – tem sofrido com a falta de estrutura para fiscalizações, o que facilita a precarização laboral e acentua a vulnerabilidade de trabalhadores à margem da regulação estatal.

Recentemente, o Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul (MPT-MS) requereu à Justiça a quitação de uma dívida que se aproxima de quase R$ 100 mil, relativa ao pagamento de verbas rescisórias e dano moral individual para um grupo de nove trabalhadores submetidos a situações degradantes em propriedade rural no município de Porto Murtinho. O apelo, embora represente apenas uma fatia do extenso universo de petições com essa finalidade que tramitam nas varas especializadas, lança luz na direção de quanto ainda persistem ocorrências de escravidão contemporânea no estado.

Desde 2019, essa fazenda é alvo de ações fiscais deflagradas a partir de denúncias que narram fatos com características de trabalho semelhante à escravidão. Em dezembro daquele ano, os nove homens – que agora aguardam a indenização – foram encontrados em situação humilhante de labor, expostos a diversas irregularidades no local onde construíam edificações e cercas para manejo de bovinos. O termo “falta” definia bastante aquela realidade: faltava água potável, alojamentos adequados, instalações sanitárias, equipamentos de proteção individual, registro do contrato de trabalho em sistema eletrônico (eSocial), além de outras garantias previstas na legislação.

À época, os auditores-fiscais lavraram 21 autos de infração com base nos vários ilícitos trabalhistas constatados na diligência. Mais adiante, em audiência administrativa, o representante da empresa proprietária da fazenda tentou afastar o vínculo empregatício com os trabalhadores resgatados, alegando que a relação entre eles se deu por meio de contrato de empreitada. Essa justificativa, porém, foi refutada pelo MPT em ação civil pública ajuizada posteriormente. “A realidade fática era a de que os ‘empreiteiros’ não se enquadravam no conceito legal de empregador e havia encarregado acampado nas mesmas condições degradantes às quais estavam submetidos todos os empregados”, sustentou o procurador do Trabalho Hiran Sebastião Meneghelli Filho.

Além da condenação ao cumprimento de 18 obrigações de fazer e de não fazer, requeridas conforme cada infração identificada na fazenda, o procurador do Trabalho pleiteia pagamento de R$ 300 mil pela grave violação de valores coletivos relevantes e juridicamente tutelados. Os pedidos aguardam julgamento pela Vara do Trabalho de Jardim.

Responsabilidade solidária

O Ministério Público do Trabalho também moveu ação civil pública em face das empresas CP Construtora Pirapozinho Ltda. e Comércio de Madeira & Carpintaria Pirapozinho Ltda., que segundo a instituição pertenciam ao mesmo grupo econômico e eram responsáveis solidárias pelo recrutamento de seis dos 15 trabalhadores mantidos em condições degradantes na fazenda há cerca de dois anos.

Embora a primeira ré tenha efetuado, ainda em 2019, o pagamento de verbas rescisórias e efetuado o registro de quatro trabalhadores, os ilícitos praticados motivaram a lavratura de 14 autos de infração e ensejaram o ajuizamento de ação com o objetivo de compromissá-las ao cumprimento de regras de saúde, segurança e medicina do trabalho, bem como de proteger os atuais e futuros trabalhadores.

Na sentença proferida este ano, as empresas foram condenadas à observância de dez obrigações de fazer e de não fazer, aplicadas pela legislação laboral, sob pena de multa correspondente a R$ 10 mil por ordem descumprida. Pela transgressão de interesses coletivos, as empresas foram penalizadas com o pagamento de compensação fixada em R$ 30 mil. O destino da quantia será definido em deliberação posterior.

Reincidência

Em março deste ano, outras três pessoas foram retiradas de condições aviltantes de labor na mesma propriedade rural inspecionada em 2019. O grupo, dessa vez formado por brasileiros e estrangeiros, tinha sido contratado para os serviços de corte, amontoamento e carregamento de madeira extraída de floresta nativa existente na fazenda, destinada à construção de “mata-burros” – vigas dispostas paralelamente e espaçadas, para a passagem de gados.

Nessa última diligência, o acesso à propriedade rural somente foi possível depois que o Ministério Público do Trabalho requereu à Justiça o rompimento de correntes e cadeados que impediam a entrada da equipe de fiscalização. Munidos da decisão judicial, os auditores encontraram, no trajeto até a sede da fazenda, estruturas improvisadas com galhos de árvore e revestidas na lateral e no teto com lonas plásticas. Embora desocupados, os precários barracos já sinalizavam desrespeito ao direito de um alojamento digno, que deveria ser oferecido pelo empregador aos trabalhadores.

No decorrer da inspeção, os homens foram localizados e encaminhados para suas cidades de origem. Juntos, receberam mais de R$ 25 mil entre pagamentos de verbas rescisórias e de dano moral individual.

O desemprego e a queda da renda, reflexos da pandemia do coronavírus, têm feito crescer o trabalho escravo contemporâneo no Brasil. De janeiro a junho deste ano, o Ministério Público do Trabalho contabilizou 772 trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão. O número já representa 80% dos 942 resgatados em todo o ano passado.

Referente à Ação Civil Pública 0024212-62.2020.5.24.0076 e 0024220-39.2020.5.24.0076

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